São Paulo – Enquanto o mundo direciona sua atenção para as novas fronteiras da tecnologia e suas potenciais aplicações, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), uma das maiores instituições de pesquisa em alimentos do mundo, escreve um capítulo histórico em sua trajetória. A pesquisadora de carreira, engenheira de software e doutora em Inteligência Artificial Silvia Massruhá assumiu a presidência da Embrapa como a primeira mulher a ocupar o cargo desde a fundação da instituição, em 1973.
Desde maio de 2023 como presidente, Silvia já visitou dois países árabes, detectou neles uma necessidade significativa de cooperação em segurança alimentar e está comprometida com a importância crucial do Brasil para a agricultura global.
Os projetos de sustentabilidade estão entre as prioridades da gestão da engenheira nos próximos quatros na Embrapa, e sua expertise em tecnologia também desempenha papel fundamental nessa liderança. Silvia quer implementar sistemas de rastreabilidade na agropecuária e promover a inclusão produtiva e digital do pequeno e médio produtor rural brasileiro.
Ela falou sobre esses temas em entrevista exclusiva à ANBA.
Trajetória profissional
Com estudos pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Silvia iniciou sua trajetória profissional na Embrapa em 1989, junto com o primeiro time de pesquisadores contratados da empresa.
“Estou na Embrapa há 34 anos. Naquela época [o concurso foi em 1989], eles já pensaram em contratar, além de veterinários, agrônomos, zootecnistas, pessoal também da área de Ciências Exatas, de computação, engenharia elétrica, matemática, estatística, física, para pensar em como trabalhar de maneira multidisciplinar para ajudar a resolver os problemas da agricultura. [A Embrapa] foi visionária lá atrás, pensando que o futuro, que é hoje, já tinha que ter esse tipo de profissional, pesquisadores, junto com os agrônomos e veterinários”, disse a presidente à ANBA.
Na época, foi criada a Embrapa Informática Agropecuária, que hoje se chama Embrapa Agricultura Digital e fica em Campinas. Silvia trabalhou lá durante toda sua carreira, antes de assumir a presidência e se mudar para Brasília.
“Sempre trabalhei com computação aplicada à agricultura. Meu mestrado foi sobre a gestão do rebanho leiteiro, istração rural, e meu doutorado, na área de Inteligência Artificial – faz vinte anos que fiz o doutorado, hoje todo mundo fala nisso, mas na época era bem disruptivo -, trabalhei com o diagnóstico de doenças de plantas usando a inteligência artificial”, contou.
Estando na Agricultura Digital, Silvia coordenou projetos em diversas áreas do escopo das 43 unidades da Embrapa, como por exemplo, a Embrapa Pantanal, onde foi definido um índice de sustentabilidade utilizando inteligência artificial na Fazenda Pantaneira Sustentável. “Eles tinham, nas três dimensões – econômico, ambiental e social – vários indicadores, e trabalhei para integrar isso através de um aplicativo para o produtor rural saber onde ele tem que melhorar”, disse.
De 2015 a 2022, Silvia foi chefe-geral da unidade Embrapa Agricultura Digital. “Nas unidades temáticas [como a de Agricultura Digital] temos a oportunidade de trabalhar em parceria com as outras 42 unidades, então nessa trajetória fui entendendo como a tecnologia digital poderia ser importante para agregar valor nos sistemas de produção, independente da cadeia produtiva”, contou.
Pouco antes de assumir a presidência, Silvia trabalhou como pesquisadora responsável pelo projeto do Centro de Ciência para o Desenvolvimento em Agricultura Digital (CCD-AD/SemeAr), uma parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) que visa criar dez distritos agrotecnológicos no Brasil todo, para fomentar a tecnologia digital para o pequeno e médio produtor rural.
Presidência da Embrapa
Silvia Massruhá contou sobre o convite para assumir o desafio da presidência da Embrapa. “É uma honra muito grande, porque por ser uma pesquisadora de carreira da Embrapa, [nós, pesquisadores, temos] uma paixão pelo que a gente faz, nossa pesquisa pode ajudar o arroz e feijão que está na mesa das pessoas, é muito gratificante”, disse.
Ela sabe que assumiu uma responsabilidade muito grande, na efeméride dos 50 anos da Embrapa. “Ela [a Embrapa] foi criada para garantir a segurança alimentar para o nosso País, porque naquela época [anos 1970] nós importávamos 30% dos alimentos”, contou. O trabalho era desenvolver tecnologias e adaptar a agricultura ao clima tropical. Depois isso foi feito em relação ao Cerrado e outros biomas brasileiros.
Hoje, o cenário é outro. O Brasil se consolidou como um grande produtor e exportador de alimentos para o mundo todo. “Olhando para o mundo hoje, estamos trabalhando com a visão do sistema agroalimentar, com o alimento no centro, fibras, energia, tudo isso integrado, multidisciplinar. Temos a questão de produzir alimentos saudáveis e nutritivos com bases sustentáveis, e a sustentabilidade não só no [âmbito] econômico, mas no ambiental e social. Então como trazer essas métricas e indicadores para a sustentabilidade, esse é um grande desafio, essa é a nova visão”, afirmou.
Tudo isso está atrelado também à transição nutricional, segundo Silvia, que são os novos modelos de dietas, com o consumidor muito mais preocupado com nutrição, saúde e com a origem dos alimentos. “Então como trazer essa transparência para o processo de produção? Aí vem outro termo alinhado à sustentabilidade, que é a rastreabilidade”, disse.
As métricas e indicadores de sustentabilidade são importantes também no âmbito internacional. “A agricultura brasileira é muito questionada se é sustentável mesmo. Nesses 50 anos, a nossa agropecuária expandiu em área 140%. Tinha no início dos anos 1970, 25 milhões de hectares de área plantada. Hoje, temos 65 milhões de hectares de área plantada, um aumento de 40 milhões de hectares. E a produtividade cresceu 580%, então se aumentou a produção por hectare com tecnologia, esse é o diferencial da nossa agropecuária”, declarou a presidente.
Por ser competidor no mercado internacional, Silvia afirma que não basta dizer que a agropecuária do Brasil é sustentável. “Temos que mostrar com números para o mundo todo. Esse é nosso desafio, ajudar a melhorar essa comunicação”, disse.
A rastreabilidade também ajuda nessa melhora de comunicação e até de imagem internacional. “Se você trouxer transparência no processo de produção, não tem o que questionar”, pontuou.
Além da sustentabilidade e da rastreabilidade, a terceira prioridade de Silvia em sua gestão é a inclusão social e digital do pequeno e médio produtor rural, que ajuda este grupo para que ele possa melhorar sua renda, incorporar seu modelo de negócios e diminuir a desigualdade entre o grande produtor e os pequenos e médios.
Empresa pública
Silvia lembra que a Embrapa é uma empresa pública, ligada ao Ministério da Agricultura e Pecuária. “Precisamos fortalecer a Embrapa”, disse. A presidente afirmou que o protagonismo mundial que a agricultura brasileira tem hoje se deve justamente aos investimentos em ciência e tecnologia e lembra que as pessoas são a parte mais importante no processo de pesquisa.
“Da mesma forma que eu disse que lá atrás a Embrapa foi visionária ao contratar pessoas com meu perfil, em 1989, e lá em 1973 mandaram pesquisadores para o mundo todo para trazer tecnologias de clima temperado para adaptar para a nossa realidade, hoje precisamos fazer concurso para trazer essa nova geração. Para fazer pesquisas, as pessoas são o principal capital, o ser humano, os pesquisadores, técnicos, analistas, assistentes, então precisa de capacitação”, afirmou Silvia.
Outro fator importante para o fortalecimento da empresa estatal é custeio e investimento para executar os projetos de pesquisa, com investimento em infraestrutura, como, por exemplo, modernização de laboratórios.
A presidente contou que o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal, irá investir até 2026 cerca de R$ 1 bilhão na infraestrutura da Embrapa. “R$ 850 milhões são para as 43 unidades de pesquisa e R$ 145 milhões mais voltados para órgãos estaduais de pesquisa que são parceiros da Embrapa dentro do Sistema Nacional de Pesquisa Agropecuária (SNPA)”, diz.
Hoje, a Embrapa tem cerca de mil projetos, e 25% deles são Parcerias Público-Privadas. “Queremos aumentar essa parceria, mas temos que melhorar nosso modelo de negócios das PPPs, porque desses 25%, só 5% do recurso é privado, é muito pouco investimento privado na Embrapa, e o que volta de royalties é muito pouco, não é suficiente para retroalimentar nossa pesquisa. Precisamos de um modelo mais ganha-ganha”, informou.
Missão internacional
Dados das Nações Unidas apontam que em 2050, a população do planeta chegará a nove bilhões de pessoas, e é esperado que a produção mundial de alimentos aumente em 70%. “É uma questão de paz, mesmo, porque se falta alimento, vai ter guerra. E é esperado que só do Brasil venha no mínimo 40% [do total de alimentos produzidos mundialmente]”, disse Silvia.
Com essa imensa responsabilidade na segurança alimentar global, a presidente informou que existe um mapeamento que mostra que o Brasil tem aproximadamente 160 milhões de hectares de pastagem, e desses, aproximadamente 40 milhões de hectares de áreas degradadas com aptidão agrícola.
“Então em vez de expandir por novas áreas para aumentar a produção, é possível usar essas áreas degradadas, recuperar essas áreas plantando ou até melhorando o modelo de pastagem delas, usando várias tecnologias da Embrapa como plantio direto, bioinsumos, integração lavoura-pecuária-floresta”, disse.
Países árabes
No fim de julho, Silvia Massruhá viajou com o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, para a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, além do Japão e Coreia do Sul. Nos dois países árabes, ocorreram encontros com autoridades de ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, empresas privadas e fundos de investimentos. O projeto da restauração de áreas degradadas foi apresentado.
Silvia percebeu o quão importante é para os árabes o tema da segurança alimentar. “A segurança alimentar é uma preocupação de todos os países árabes, hoje eles têm uma dependência muito grande de outros países. Eles querem essa parceria com o Brasil e veem a Embrapa como referência em agricultura tropical e como um parceiro importante para ajudar a desenvolver a agricultura”, disse.
Outros temas discutidos foram o intercâmbio de pesquisadores para aprimoramento de práticas agrícolas, os fertilizantes e a dependência da agricultura do Brasil nessa seara, os impactos de mudanças climáticas e a gestão de recursos naturais, como solo, água e biodiversidade.
Com os governos, foram discutidos possíveis intercâmbios na área de segurança alimentar e na parte ambiental. “Na Arábia Saudita, foi demonstrado algum interesse em intercâmbio na produção de tâmaras. Nós temos a Embrapa Semiárido em Petrolina (Pernambuco), que tem bioma parecido e já tem pesquisas nessa área com tâmara, hoje estão um pouco menos ativas, mas poderíamos reativar, poderia ser uma possível parceria em melhoramento genético. Também há grande demanda por produção de alfafa, é motivo de intercâmbio que também seria interessante”, disse.
Silvia destacou ainda sua visita ao Centro Internacional de Agricultura Biossalina (ICBA, na sigla em inglês), que fica em Abu Dhabi, capital dos Emirados. A Embrapa já é parceira da instituição desde 2020. O acordo visa o desenvolvimento e a disseminação conjunta de tecnologias relacionadas ao aproveitamento de águas ricas em sais. “Queremos intensificar essa parceria e troca de conhecimento”, disse.
Mulher na liderança
Silvia reconhece a importância de ser a primeira mulher presidente da Embrapa. Ela foi também a primeira chefe mulher na Embrapa Agricultura Digital. “Em minha carreira nunca pensei muito nisso, nunca me intimidou ser mulher, trabalhei sempre em duas áreas predominantemente masculinas, tecnologia e agronomia, mas o que eu sempre tive em mente e o que eu falo muito quando me perguntam sobre essa questão da liderança feminina: O meu foco sempre foi na capacitação, me preparar para ser a melhor profissional. Capacitação e persistência fizeram a diferença na minha carreira, com foco definido”, declarou a bisneta de libanês.